Naquele dia estava ainda mais aberta, ainda mais sangue, ainda mais ardida. Ainda mais ferida, mais do que qualquer outro dia de toda a nossa vida. Vivi e convivi com aquilo desde que saí do buraco escuro e consigo me lembrar de cada momento ela-eu.

A ferida nasceu pequena, sete meses, virou marca e cresceu gêmea. Cada ano de vida, mais um centímetro de dor. Aprendeu a andar comigo, a falar comigo, a chorar junto. Mas uma hora, uma hora a menina para de crescer. A ferida não. A ferida aumenta e domina a mulher. A mulher vira escrava, a ferida vira senhora.

A gente aprende a obedecer a dor, a gente aprende a aceitar, a gente aprende a calar com o grito da ferida. Mas a ferida, a ferida não cala, cria casca mas não cobre a cratera, que se funda, finca e afunda. Imunda, imersa, vira carne viva o que a gente tem por dentro.

Doía mais um dia. Um dia desses, dia ordinário do nosso dia a dia. Doía o dia até deitar. Doía um dueto de dor e diversão, digno de Sade. Doía até o diabo em pessoa descer. O diabo, em forma de dedo. Doía até o dedo-diabo dedar a ferida. O dedo, dedo duro, apontar o dedo pra doida doída.

A ferida excita.

O olho quase fechado de malícia. O dedo que roça de leve o arrepio, o labio que afunda no dente e a perna se fecha de prazer.

A ferida hesita.

O dedo ousado de vingança fica mais duro e descasca a casquinha. Quebra a tampinha de cristal e chega na parte quente e molhada.

A ferida agita.

O corpo sente a conexão, dedo e buraco vermelho. O mastro gira na carne, cada vez mais rápido, cada vez mais fundo, cada vez mais aguda, cada vez mais prazer, cada vez mais um só ser em único ritmo perfeito cada vez mais, cada vez mais.

A ferida grita.

Um suspiro. Um sorriso. O corpo treme, o buraco pulsa, o sangue escorre, o dia dorme.