Os corpos, um do lado do outro, só se encontram no infinito. O braço marca no travesseiro um cafuné mecânico e insinua o carinho que não sabe mais dar e nunca mais vai receber. O meu despertador toca. O do homem, não. Nenhuma vez nos últimos meses. Perdeu a função, assim como o próprio.
Meu corpo levanta e me lembra a mesma coisa de sempre: já fazem vinte outonos. Cada ano que fecha cai uma folha do coração e morre uma cor na memória. Mas ainda lembro. Lembro do Opala, 83, lembro da barba, bem escura, lembro dos desenhos, lembro do sorriso, na boca e nos olhos, lembro da buzina, três vezes: era hora de descer.
Fecho a porta do quarto-tumba, escuro como a morte. E a abro o caminho de sol para a minha agência.
Lá na esquina, soa uma buzina no trânsito. Três vezes. O Opala, 83, virou um Corolla. Mas ainda é amarelo. A barba virou um bigode, branco. Mas o olho, o olho não nega. O sorriso também. É ele.
Estava vermelho, mesmo assim, atravessei.