Quando ele quebrou as rodinhas da minha Anacleta, ele quebrou também a minha infância.

Cinco pratos na mesa da família de quatro pessoas: três de plástico e dois de vidro. O suco sabor roxo já estava servido, dosagem perfeita para nenhuma criança exagerar e ficar da cor do corante. O Roger que me contou, tinha dias que ele até tomava um pouco a mais, só pela brincadeira. Roger contou também que a filha da vizinha exagerou no sabor amarelo e, por isso, teve que tomar suco de beterraba para voltar ao normal. Impressionante como o Roger sabia de tudo. Roger sabia até identificar os nuggets de frango que se misturavam com os de legumes, colocando as crianças em uma espécie da campo minado de comida.

Depois do almoço era hora de subir da rua um ao parquinho da rua quatro sentada na minha Anacleta, a minha bici predileta. Ela era demais, a gente super quase voava junto. Talvez o Roger tivesse um pouco de ciúmes da Anacleta, soltava gargalhada das fitinhas amarradas no guidão e das rodinhas que não me faziam cair no chão. Mas Roger dizia que eram justamente elas que não me deixavam voar. Na rua quatro as crianças não gostavam muito de mim, nem do Roger, nem da Anacleta. Nem na rua um, nem em rua nenhuma. Mas eu gostava muito da casinha, lá o Roger me contava algumas histórias de suspense e fazia umas charadas tão difíceis que nem parecia existir resposta. Mas sempre tinha, Roger achava uma resposta.

O sol ia dormir e era hora de a gente ir também. Minha mãe não gostava que nenhum amiguinho dormisse lá em casa mas o Roger podia. Quando ela não deixava, ele dormia escondido mesmo, e ela fingia que não sabia. Ela achava ele muito engraçado. E como mimava meu amigo. As vezes tratava ele melhor que eu.

Ele tinha o mesmo tamanho da boneca gigante da Xuxa e, apesar de às vezes ficar invisível e mudar de forma toda hora, era bem menos assustador. Roger ficava com cara de monstro e depois de ursinho e soltava aquela gargalhada. No fundo até tinha medo dessa risada, mas sorria junto.

Roger não era criança, mas ninguém sabia disso. Só eu. Mas ele era muito mais legal que uma criança, por isso que ele era meu amigo, meu único amigo. Com o tempo percebi que ele só gostava de mim porque ele queria voltar a ser criança. Por isso ele roubou a minha chupeta, por isso ele não queria que eu ficasse com outras crianças e por isso que implicava tanto com a rodinha da Anacleta. No fundo acho que ele que queria ser a criança da nossa história.

Um dia, depois do almoço, fui correndo ver Anacleta. E coitada, estava ainda mais magrela. Tinham sumido com as duas rodinhas dela. Aparece Roger com as duas rodinhas na cabeça, pareciam duas anteninhas de um etzinho. Roger disse que era hora de eu voar, disse que ia me ajudar. Roger disse que ia segurar, mas não segurou. Roger empurrou. E eu voei. Mas a Anacleta ficou. Eu voei, voei de vontade de ser criança, voei de saudade da chupeta, voei de saudade do guidão, voei de saudade da rodinha, voei pelo medo de cair no chão. E aterrissei meio dormindo na rua quatro, de cabeça no parquinho.

Quando abri o olho, Roger estava na minha frente. Ele e a Anacleta, toda torta. Roger deu uma gargalhada e comeu a bicicleta. Roger foi sumindo. Roger foi sumindo com a Anacleta. Roger foi sumindo com a minha infância.

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