Sonhei.
Um sonho narrado pelas vozes na minha cabeça.
Um sonho-narrativa.
Eu era a protagonista da história de um personagem só.
O sonho começa na página um.
Sem título.
Sem agradecimento.
Só a primeira frase.
“Um dia eu resolvo acordar no meio da noite”.
A voz me acorda.
Um cenário de quase morte: o quarto escuro e inerte.
Espaço pausado no tempo.
Sem tempo de respiro.
Sem tempo de pensar.
A mesma voz.
Um novo comando de dentro.
Eu-zumbi.
“Um dia eu acordo no meio da noite e resolvo ir para Cuba fazer a revolução comunista”
É o que acontece.
Saio pelo portão da frente.
Minha casa não é minha.
Não sei direito se o corpo é.
Mas o carro.
Esse é meu.
“Um dia, bem no meio da noite, eu resolvo pegar meu carro”.
Sigo.
Rua escura.
Do lado de fora: um nada em forma de névoa sem forma.
Do lado de dentro: um eu meio sem rumo à estrada.
“Um dia, bem no meio da noite, pego meu carro e vou fazer a revolução comunista em Cuba”
A angústia sobe.
Preciso fazer a revolução.
O corpo pesa.
O carro acelera.
A voz continua.
“Um dia, bem no meio da noite, eu entro meu carro em uma rua estreita e escura”.
O carro vira junto com meu braço no volante.
Sombras lá for a de pessoas com raízes e folhas.
A rua da largura do carro.
Galhos raspam o silêncio no carro.
Pequenas bolhas de água brotam do vidro.
Não sei se a garoa vem de dentro.
Não sei se a garoa sai de fora.
A voz lembra que ainda está lá.
“Um dia, bem no meio da noite, eu entro meu carro em uma rua escura e atropelo um mendigo”.
Um corpo cai no capô.
Escorrega para o chão.
O pneu passa em cima de nada.
O retrovisor não vê ninguém.
Só eu.
Protagonista na história de uma personagem só.
Me assusto.
A pupila aumenta.
Cenário que repete.
O braço fica duro no volante.
“Um dia, bem no meio da noite, entro numa rua contramão”.
Carros desviam.
Carros dançam entre si.
A buzina dá ritmo.
Carros se trombam.
Gotinhas.
Vidro caleidoscópico entontece.
Vermelho dança.
Branco.
Amarelo.
Envolta, o preto.
Voz que volta.
“Um dia, bem no meio da noite, vou fazer a revolução comunista em Cuba”
Repete cenário.
Erro a saída.
Me afasto da estrada.
Ando em voltas.
Ando em espiral.
Afundo no que sinto.
Lugar que já passei.
Lugar que já conheço.
Voz que me lembra.
“Um dia, bem no meio da noite, vou fazer a revolução comunista em Cuba”
Corta.
Me vejo de fora.
Corta.
Volto pra dentro.
Lugar que estudei.
Vazio.
Protagonista de uma história de uma personagem só.
A voz grita.
“Um dia eu resolvo acordar no meio da noite”.
Corta.
Me vejo deitada na cama.
Dormindo.
Olho aberto.
Corta.
Vejo de dentro pra fora.
Sinto o Corpo.
Ouço a voz.
“Um dia eu acordo no meio da noite e resolvo ir para Cuba fazer a revolução comunista”
Volta o carro.
Vota a rua.
Volta o medo.
Passa a estrada.
Erro a estrada.
Passa a estrada.
Erro a estrada.
Erro a rua.
Erro o caminho.
Cada vez menos Cuba.
Culpa minha.
“Um dia eu resolvo acordar no meio da noite”.
Volto pro quarto.
Durmo profundo.
Olho aberto.
Acordo de dia.
Eu só queria fazer a revolução.
Comunista.
A estrada pra Cuba não existe mais.